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Mangueira, a folia e o racismo estrutural

por Claudio Barría Mancilla (*)

Sim, de fato o Carnaval, a maior festa popular brasileira, é um momento de brincadeira, de diversão, de folia. Mas não é menos verdade que na cultura popular é justamente ela, a brincadeira, a encarregada de transmitir parte importante do capital simbólico que dá coesão e sentido à vida em sociedade, em especial aos grupos e classes populares.

A história não contada, guardada na memória ancestral dos povos subalternizados, aquela com potência para curar a abissal desigualdade estrutural no Brasil, parece entrar pelas frestas da brincadeira e dos tambores junto com a comissão de frente na avenida, trazendo toda a força de uma cultura que continua se reinventando para reescrever sua trajetória como povo.

Então não é questão de “politizar” o carnaval. É a memória dos povos a que carrega de atualidade política suas festas e que traz de volta para o centro da nossa vida em comum a possibilidade de mudarmos nossas relações a partir do aprendizado de um passado que desconhecemos. A Escola de samba é assim, nesse momento, uma verdadeira escola. Seremos capazes de aprender a lição?

Mas e o racismo?

As campanhas #QualPerfil? e [r+H] Recursos Mais Humanos se articulam para mobilizar a sociedade no enfrentamento ao racismo estrutural que impede ou dificulta o acesso da juventude negra ao mercado de trabalho. Qual a relação disso tudo com a nossa causa?

Então, o que precisamos entender é que para o racismo ter se tornado “estrutural”, ou seja, parte das relações sociais, de modo que a gente reproduz ele mesmo sem perceber e sem nos acharmos racistas, foi preciso um longo processo de “apagamento” da história, da cultura, da espiritualidade e da racionalidade dos povos que foram submetidos por séculos na nossa história.

Esse “apagamento” é a base da naturalização da discriminação e do preconceito como parte da vida social brasileira. E isso quer dizer que para superarmos as relações de discriminação, de submissão, para superarmos todas as formas de racismo, é igualmente urgente e necessário “escovar essa história a contrapelo”, como dizia o Walter Benjamin.

É essa memória, esse universo de sentidos, com seus heróis, seus mitos de origem e suas deidades o que permite ao próprio povo negro se enxergar hoje como uma potência civilizatória e se orgulhar da sua trajetória como povo, assim como da sua diversidade com relação ao padrão da modernidade, definido pela história colonial como branco e eurocentrado.

É também o contato com essa história – com toda a complexidade dessa cultura e suas trajetórias e narrativas – o que permite, ou ao menos pode permitir, ao branco enxergar o não-branco como sujeito e não como objeto, isto é, na sua plenitude humana e não apenas como mão de obra ou como objeto da sua assistência. A memória coletiva humaniza, ao tempo em que possibilita releituras coletivas, para além das boas ou más intenções dos indivíduos.

Parece que não, parece exagero, mas sim, tudo isso está no desfile que este ano foi campeão do Carnaval carioca, animado pelo enredo “História para ninar gente grande” apresentado pela Escola primeira de Mangueira.  Assista você mesmo;

Ou veja ditamente o desfile da Mangueira no site oficial da Globosat.

(*) Claudio Barría é doutor em educação pela UFF, professor da UNIRIO e sócio fundador da Kangen CC.

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