Por Nadia Rebouças
Racismo Estrutural
Trabalho como consultora de empresas para o setor de Recursos Humanos e para comunicação interna há 20 anos. Já presenciei muitas vezes, nas conversas com gerentes e ou supervisores das empresas, o profissional de RH perguntar sobre o perfil desejado para uma contratação. As empresas mais organizadas, têm normalmente um questionário, ou brief estruturado, para descrever o perfil desejado para o futuro profissional. Já tive oportunidade de ver a descrição de perfis com indicações subliminares: “boa aparência”.
O que se esconde atrás de um pedido desse? Durante mais de 30 anos de publicitária contava nos dedos os poucos profissionais negros que tive como colegas. Quando existiam eram boys ou funcionários das áreas administrativas. Quando fui dona de agência contratei negros, inclusive na tão privilegiada área de criação. Nos últimos anos ficou mais difícil ser claramente racista, o que antes era fácil de ser “compreendido” e aceito por todos. No silêncio. Racismo virou crime.
Discute-se o racismo estrutural cada vez com mais frequência. Desde os anos 2000 as empresas passaram a ser estimuladas a contratar com diversidade, a mostrar seus números de negros, mulheres em cargos diretivos e homossexuais. Políticas públicas nas universidades e empresas públicas foram estabelecidas. As campanhas publicitárias sempre questionadas por não mostrar a diversidade brasileira ou ainda mostrar mulheres sempre numa situação de exploração, tiveram que ir mudando. Todos passaram a tomar mais cuidado. As grandes empresas seguiram a tendência com seus balanços sociais, mais tarde relatórios de sustentabilidade. Afinal, começou-se a levar em conta a reputação das marcas. Criaram processos, procedimentos, regras e contrataram muitos consultores para falar das vantagens da diversidade, eu entre muitos outros.
Racismo velado
Participei da campanha “Onde você guarda seu racismo?” e pude ver, de pertinho, como somos desafiados pelo racismo, muitas vezes sem nenhuma consciência. A pergunta – Onde você guarda seu racismo? – tinha uma pegada, todos somos racistas e por isso despertava respostas inesperadas: guardo no coração (UAU!), guardo na pele, guardo no bolso, guardo na cultura… Nesses 15 anos as mudanças não foram só realizadas por políticas públicas, mas pelos que têm lugar de fala.
A população negra, especialmente os jovens, revelaram sua beleza, seus talentos e a força de ocupar espaços na sociedade. Chegaram às universidades. Foram muito além das áreas onde sempre foram destaque: música, esporte, dança, um talento especial que só quem conheceu a África sabe ser coisa de DNA. Construíram carreira como jornalistas, médicos, arquitetos, advogados, professores universitários, poetas, escritores. Sem nenhuma timidez passaram a ocupar todos os espaços possíveis no meio do nosso sempre “escondido” racismo.
É claro que proporcionalmente ao número de negros do Brasil, isso ainda é pouco, muito pouco. Nossos meninos negros continuam a ser mortos nas periferias das grandes cidades brasileiras por racismo. Muitos batem com a cara na porta, mesmo tendo a formação adequada, por que estão “fora do perfil”. Boa aparência? Seguem de volta para suas casas se perguntando: “Que raios de perfil é esse? Minha formação, meu currículo, idade, tudo dentro do que estava especificado no site!”
Enquanto isso um advogado negro, saindo do trabalho com terno preto, me disse evitar de ir ao shopping porque sempre é confundido com o segurança. Uma jovem juíza chegando ao Fórum escuta do porteiro: para acompanhar o julgamento entre na próxima porta… Que boa recepção!
A pesquisa
A pesquisa “A Incidência do Racismo sobre a Empregabilidade da Juventude em Niterói e São Gonçalo”, estudo desenvolvido pela Bem TV-Educação e Comunicação, em parceria com a Faculdade de Estatística da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como uma das ações do projeto “Frente Papa Goiaba de Promoção dos Direitos da Juventude Negra”, revelou que em Niterói e São Gonçalo temos jovens desempregados e muitos jovens negros. Qual o perfil?
Um grande número de jovens trabalha sem nenhum tipo de vínculo empregatício. Na faixa etária entre 15 e 19 anos, nos dois municípios, além do desemprego ser maior, mais da metade dos que trabalham foram classificados como “autônomos informais”. Na linguagem dos jovens “é o corre”. “- Não tem emprego com carteira assinada a gente vai para o corre!”. “Muitos jovens que trabalhavam no comércio (padarias, lojas, farmácias), ou mesmo em empresas prestadoras de serviço de médio e até de grande porte, declararam possuir apenas “um acordo de boca”, sem acesso a qualquer direito trabalhista ou qualquer garantia. A informalidade tem um papel importante: 25% do total de jovens trabalhadores de Niterói e 32% dos jovens trabalhadores de São Gonçalo atuam como “autônomos informais”.
A taxa de desemprego dos jovens em Niterói é maior do que na Síria: 32,7%. Em São Gonçalo é ainda maior: 34,7%. Em Niterói, para os jovens autodeclarados pretos: 48% está sem emprego e 47% quando falamos de mulheres pretas. É expressiva a discriminação por cor no mercado de trabalho. Ainda que a população negra tenha tido acesso nos últimos anos a novas políticas públicas muitos jovens desconhecem os programas de formação profissional: Pronatec, Projovem, Prouni ou FIES.
A campanha
Persistem fatores da desigualdade que não podem ser explicados só através dos números ou de ações racionais. É sobre eles que quero falar mais profundamente. Reconhecemos o racismo? Nós que temos a responsabilidade de contratar, percebemos os resquícios do racismo que nos faz pensar que um negro de terno preto é segurança do shopping? A consciência do racismo é o problema a ser enfrentado e que diz respeito à garantia de direitos humanos. É fundamental o engajamento de toda a sociedade brasileira, mas mais especificamente dos empresários e de todos aqueles que têm a oportunidade de garantir a diversidade nos ambientes de trabalho. Os responsáveis pelo setor de Recursos Humanos e Departamentos Pessoais das empresas tem a possibilidade de promover a igualdade e inclusão, corrigindo o que, historicamente, são as vítimas de discriminação e uma enorme injustiça desde a abolição da escravatura.
Mas tornamos nosso racismo consciente? Refletimos sobre em que lugar e dimensões ele está “guardado”? A campanha criada pela Kangen CC – #QualPerfil – nasce para dar maior consciência à sociedade em geral sobre nosso racismo e em particular para os setores de Recursos Humanos, por Recursos + Humanos. Nas grandes empresas existem processos, regras, guias, códigos de ética, mas numa região onde imperam as pequenas e médias empresas isso passa ao largo. Talvez isso possa explicar o número escandaloso de desemprego de jovens negros em Niterói e São Gonçalo. Mas isso acontece em todo o Brasil.
O quê fazer
Escrevi esse texto para você que tem algum poder para contratar. Para que você perceba as oportunidades que seu trabalho te oferece para corrigir injustiças, e você talvez nem perceba quando exclui um candidato. Reveja situações objetivas, perceba o quanto suas preferências e discriminações afetam vidas jovens. Criar estratégias de comunicação para os funcionários de sua empresa para refletir sobre o racismo e criar guias e códigos de conduta são exemplos do que foi adotado nas grandes empresas e pode chegar às empresas pequenas e médias, de serviço e ou comércio.
Não é vergonhoso admitir ou perceber nosso racismo, ele é estrutural. Vergonhoso é não reconhecer e continuar não promovendo a igualdade racial, a nossa diversidade. É tempo de dizer um NÃO à discriminação e garantir igualdade de oportunidades.