O Vírus do Preconceito: a Revista Poli, da Fiocruz, discute porque a pandemia de COVID 19 atingiu e matou mais pretos e pardos no Brasil.
por Cátia Guimarães
Maria tinha 63 anos. Era obesa, hipertensa e diabética. Dormia no emprego, uma residência do bairro nobre do Leblon, onde trabalhava como doméstica. Foi a primeira vítima fatal do coronavírus no estado do Rio de Janeiro, um dos mais atingidos pela Covid-19.
Sim, a notícia é velha. Mas muito mais antigo do que ela é o fenômeno que essa tragédia ajuda a ilustrar: o racismo estrutural como um determinante das condições de saúde e doença das pessoas. Talvez tenha passado despercebido, mas parece cada vez mais necessário não esquecer: Maria era negra.
O nome é fictício. Mas a história é mais do que verdadeira. E ela exemplifica a desigualdade entre negros e brancos durante a pandemia de COVID 19. Isso porque dados de estudos diversos mostram que a contaminação pelo novo coronavírus cresceu mais entre pretos e pardos. Mesmo nos momentos iniciais. No começo, como se sabe, os brancos eram a maior parte dos doentes. Mas os negros morriam mais.
Embora atualizado pelos números da Covid-19, esse resultado não é uma novidade. O vírus do preconceito anda por aí há muito mais tempo que o novo coronavírus. Segundo a médica e pesquisadora Jurema Werneck os indicadores de saúde há muito tempo são piores para a população negra. “São altas taxas de mortalidade precoce e mortes por causas evitáveis”, diz ela, que é diretora executiva da Organização Não-Governamental Anistia Internacional.
Para Começar a Escassez de Dados
A primeira informação importante sobre a situação da população negra na pandemia é exatamente que falta informação. Já havíamos relatado aqui, como inexistem dados sobre a incidência da COVID junto à população quilombola. Além disso, os dados sobre a cor e raça dos contaminados na pandemia só apareceram nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde a partir da segunda semana de abril. (Embora esse registro – de cor e raça – seja obrigatório nos prontuários de saúde no país desde 2017).
A mudança, no entanto, não foi uma iniciativa do governo. Ela se deu por pressão de entidades da sociedade civil. Instituições como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Coalizão de Negros por Direitos fizeram uma carta pública denunciando a ausência de informação. A pesquisadora Edna Araújo da Universidade Estadual de Feira de Santana faz um apelo aos profissionais de saúde para que registrem a informação sobre cor e raça, no prontuário dos pacientes:
– Perguntar sobre como as pessoas se consideram do ponto de vista racial não significa cometer racismo, nem segmentar grupos populacionais. As pesquisas têm mostrado que há diferenças. Inclusive quando a gente compara quem é branco e pobre com quem é negro e pobre. Então algumas diferenças não são explicadas pela pobreza. Portanto tem algo mais aí. Os profissionais de saúde podem ajudar muito para que a gente tenha cada conheça melhor essa questão – diz ela.
O vírus do Preconceito veio Antes
Edna é um dos sete autores de um artigo que tenta extrair conclusões dos poucos números disponíveis sobre a incidência da COVID da perspectiva da raça. O levantamento cita, por exemplo, o Boletim nº 17, com dados de 17 a 23 de maio. Esse documento atesta que, embora a maior parte dos pacientes internados com COVID19 fosse branca, os negros eram maioria entre os óbitos registrados. Entre os internados 49% eram brancos, 42% eram pardos e 7% eram pretos. Por outro lado, entre aqueles que morreram da doença, 49% eram pardos, 7,5% eram pretos e 41% eram brancos. Em ambos os cálculos chama atenção o número de casos em que a informação sobre cor e raça foi ignorada: 19.226 no das internações e 6.245 no total de mortes.
No mesmo período de tempo, situação semelhante se encontra nos dados referentes às gestantes. Nessa condição, o número de mulheres negras contaminadas foi o dobro do de mulheres brancas – 48% contra 24,2%, respectivamente. A diferença na mortalidade foi ainda maior: 55,5% das gestantes negras que contraíram Covid-19 morreram, desfecho que atingiu apenas 13,9% das brancas. E as desigualdades não reduzem com o tempo. De acordo com os pesquisadores, entre 28 de junho e 4 de julho morreram três vezes mais gestantes pardas do que brancas.
A análise comparativa dos boletins epidemiológicos confirma também a percepção de que a pandemia chegou ao Brasil por meio das classes média e alta. Depois foi se espalhando entre as populações mais pobres, majoritariamente negra. A hospitalização de brancos por causa da Covid-19 foi se reduzindo quase na mesma proporção em que aumentou a de pessoas pardas. Até um dado momento em que os números praticamente se encontraram. A partir daí, eles se estabilizaram, mas com uma leve superioridade entre a população que se declara parda.
Sem Água em Casa
O vírus do preconceito se manifesta nas condições de vida da população negra. Para quem mora nas periferias e favelas, em locais sem saneamento, onde muita gente vive em casas pequenas, o isolamento, muitas vezes, não é uma opção. Os dados oficiais mais recentes no Brasil, sobre local de moradia segmentados por raça e cor são do censo de 2010. Eles indicam que na capital paulista, por exemplo, 18,7% das pessoas negras viviam em favelas. Já entre a população branca, esse número era de 7,3%. Também no Rio de Janeiro, 30,5% dos negros viviam em favelas, contra 14,3% dos brancos.
O levantamento ‘Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil’, também publicado pelo IBGE em novembro de 2019, detalha essas informações. Muitos fatores relacionados a uma maior vulnerabilidade ao COVID 19 predominam entre os negros. A falta de acesso à água, por exemplo, atinge mais 17,9% dos negros e apenas 11,5% dos brancos. E, sem água, nada de lavar as mãos, como pedem as autoridades sanitárias.
Sem Home Office
Foi também a população negra que teve maior dificuldade de se adequar ao isolamento social quando isso dependia da flexibilização do trabalho. Aqui, mais uma vez, os números não deixam dúvidas. Os negros são maioria entre os desempregados, entre os que estão na informalidade e nos postos de trabalho mais precários. São também maioria em várias atividades consideradas essenciais durante a pandemia.
A partir de dados do IBGE de 2019, a pesquisadora Marilane Teixeira, da Universidade Estadual de Campinas, elaborou para esta reportagem, uma tabela com o percentual de negros e brancos ocupados em dez categorias consideradas essenciais. No setor de alimentação, por exemplo, que envolve restaurantes e outros serviços, 59,2% são pretos e pardos. No comércio de produtos alimentícios, farmacêuticos e afins, eles são 57,8%. Além disso, são maioria no setor de fabricação de farmoquímicos.
– A pessoa que trabalha no comércio tem um nível de exposição muito elevado [ao novo coronavírus]. Uma caixa de supermercado, por exemplo, atende centenas de pessoas durante o dia – detalha Marilane.
Há muitos postos de trabalho que não permitiram adaptações visando o isolamento social. Além do trabalho no comércio, manicures, empregadas domésticas, operários de fábricas, e outras ocupações não permitem o home office. A conclusão foi o desemprego para muitos, ou a exposição à pandemia para outros tantos. Enquanto isso, profissionais de grandes empresas e servidores públicos, brancos, em sua maioria , tiveram alternativas como teletrabalho ou férias antecipadas. Para a população negra, no entanto, o vírus do preconceito prevalece.