Com o Coração na Mão

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Com o Coração na Mão

Conheça o Corre da Gabi Marinho: jornalista e artista Plástica do Jardim Catarina em São Gonçalo. Sua obra “Com o Coração na Mão” foi citada pelo MoMA de Nova Iorque.

Com o Coração na Mão
Gabriela Marinho é artista plástica e moradora do Jardim Catarina em São Gonçalo

Gabriela Marinho, de 27 anos, é jornalista e artista plástica. Ela vive no Jardim Catarina, em São Gonçalo e cria esculturas, pinturas, poesias e foto-performances. No fim de novembro sua arte foi citada  num story do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, no Instagram. A postagem tinha por objetivo divulgar o site 0101 Art Plataform , que reúne virtualmente obras de artistas africanos ou da diáspora africana. Mas foi a foto-performance “Com o Coração na Mão” que ilustrou a postagem, junto com a descrição da iniciativa digital.


No dia 04 de dezembro, a citação foi notícia no jornal “O São Gonçalo”. A jovem artista, então, divulgou o link da matéria nas suas redes sociais, junto com o texto: “Um dia fui estagiária do Jornal O São Gonçalo, hoje saio como pa uta… e quem escreveu a matéria é um jovem repórter que participou comigo de um projeto de Comunicação Comunitária, o “Jovens Comunicadores”, promovido pela Bem TV! (…) A galera de São Gonçalo e do Catarina mandando mensagem no direct e compartilhando no Facebook. Até no twitter usaram Jardim Catarina como hashtag, e o assunto nem era tragédia”.


Em entrevista à “Qual Perfil” Gabriela conta que a arte e a comunicação sempre estiveram presentes na sua trajetória. Além disso, ela explica como sua ancestralidade e sua identidade de jovem negra e periférica orientam toda a sua produção artística. Para quem quiser conhecer o trabalho, é só buscar o Ateliê Kianda nas redes sociais. Aliás, a artista aceita encomendas.  (Olha o Natal chegando!)


Com o Coração na Mão
A obra “Com o Coração na Mão” foi citada em story do MoMA.

O Museum of Modern Art de Nova Iorque citou você num story no Instagram. Como foi isso?

Pois isso aconteceu agora no fim de novembro. Eles publicaram uma foto-performance, clicada pelo fotógrafo Mateus Almeida, também de São Gonçalo. A obra é de 2019 e chama “Com o Coração na Mão”.  O post, na verdade, falava da 0101 Art Plataform: um site brasileiro; que divulga e comercializa obras de artistas negros. O meu trabalho está na 0101 desde junho, quando eles me convidaram para ser representada pelo coletivo. Na hora de falar dessa plataforma, o MoMA usou uma imagem da minha obra como capa.

Como você ficou sabendo da publicação? E qual foi sua reação?

Eles [o MoMA] me marcaram no story, né? Mas, de todo jeito, a Thayná Trindade, que foi quem me levou pra 0101, já tinha me avisado que ia ter uma publicação importante sobre o meu trabalho. Eu fiquei super emocionada. Achei muito importante. Não apenas pra mim, mas para todas as mulheres pretas, artistas brasileiras, de um modo geral. Além disso, depois que o “Jornal O São Gonçalo” publicou a matéria sobre essa citação, eu vi que esse acontecimento também foi super importante para o meu território. Para os jovens do Jardim Catarina.

A foto-performance “Com o Coração na Mão”, mostra uma mão negra segurando um coração moldado em cerâmica. Qual o significado por trás dessa obra?

Toda a minha arte tem como ponto de partida a cerâmica. O barro, enquanto corpo maleável. Eu tento partir desse elemento, para então ir para outras linguagens. Essa obra (a foto-performance “Com o Coração na Mão”) fala muito dos afetos que envolvem a existência do povo preto. A gente está sempre com os nervos à flor da pele, com os afetos à flor da pele, ainda que seja de forma inconsciente. A argila pesa. O coração de argila que aparece na foto é pesado. E isso se assemelha muito ao coração do povo preto, porque a nossa vivência é sempre muito intensa.

Aliás, isso tem tudo a ver com o que diz a filosofia africana: razão e emoção são uma coisa só. E a emoção, na filosofia africana, é simbolizada pelo coração. Para o mundo ocidental branco, a razão está no centro. Os afetos são desvalorizados.  Mas na cultura negra não tem como dissociar razão e emoção. Portanto, a imagem da foto-performance traz à tona esse afeto. Acho que foi por isso que escolheram. É de fácil entendimento. O peso desse afeto traz algum tipo de reação.

Por que a sua obra tem a cerâmica como ponto de partida?

O barro tem uma importância muito grande na nossa existência, enquanto povo preto. Em 2015 eu fiz especialização em literatura africana pela UFRJ. Dentro desse curso estudei o espaço literário do José Luandino, que é um autor angolano branco. Então descobri a importância do barro na obra dele. Esse autor sempre destaca, no seu trabalho, os museques, que são favelas em Angola. Nas casas, em geral, o chão é de barro, e o Luandino situa os personagens em relação ao pertencimento deles àquele lugar de chão de barro. Enquanto no Ocidente o foco é sempre o céu, na África a centralidade está sempre a terra. É de onde viemos e é pra onde vamos.

Como você começou a sua carreira artística?

Tanto a arte quanto a comunicação sempre estiveram presentes na minha vida. Eu precisava me comunicar bem. Uma mulher preta, retinta, moradora do Jardim Catarina em São Gonçalo precisa se comunicar bem pra ser ouvida. Portanto me formar jornalista foi uma consquência natural. Apenas institucionalizou o que eu já vivia. Por outro lado, eu também sempre fiz arte. Eu e minha mãe fazíamos biscuit, quando eu era mais nova. A modelagem já estava lá. Mas no nosso pensamento ingênuo aquilo não era arte. A gente bordava camisetas pra vender, pra fazer uma renda extra. Mas a gente nunca viu isso como arte. Por conta da falta de auto estima, eu nunca imaginei que fosse essa potência.

Comecei a estudar modelagem em argila em 2016, porque queria trabalhar com obras em 3D. Comecei no Museu do Ingá, em Niterói. Mas era muito caro. E eu não conseguia me reconhecer naqueles lugares. Então resolvi montar meu ateliê em casa. E eu fui estudar sozinha, numa perspectiva afrocentrada. Foi assim que surgiu o Ateliê Kianda. Escolhi esse nome porque Kianda é uma palavra em kimbundu, que significa sereia.

E como você foi parar na Plataforma 0101?

A Thayná Trindade, que já me conhecia dos círculos da arte preta, me apresentou na Plataforma 0101 . Ela começou a trabalhar lá como assistente de curadoria e citou o meu trabalho para o Moisés Trindade e para a Ana Beatriz Almeida. Então em junho desse ano eles me convidaram para ser representada pelo coletivo.

Eu sempre divulguei minhas obras na Internet, mas por conta da pandemia, acho que meu trabalho ganhou mais visibilidade. Numa situação normal, uma artista do Jardim Catarina não tem entrada nesses círculos mais elitizados do mundo artístico. A gente não tem dinheiro pra enviar as obras para uma exposição em outra cidade, por exemplo. A gente não circula nas galerias famosas dos bairros sofisticados. Está tudo muito distante. Mas na Internet foi possível diluir um pouco essa desigualdade. Meu trabalho ficou mais visível quando todo mundo só tinha a Internet para se apresentar.

Quais os principais desafios que você enfrentou na sua trajetória?

Quando uma pessoa preta faz cerâmica é artesanato. Quem faz artesanato é preto e indígena. Mas quem faz arte é branco. Isso tem consequências. Inclusive na diferença dos preços das obras e na valorização dos trabalhos, na sua visibilidade. Portanto, a definição do que é e do que não é arte, também é racializada. Eu tenho meus propósitos. Ao longo do meu caminho, se eu não me via acolhida num espaço, eu recuava. Então, foi sempre uma rede preta que impulsionou a minha trajetória.

Eu cheguei na Plataforma 0101, que é uma plataforma voltada para artistas negros, através de um contato dessa rede. E fazendo parte da 0101, tive a oportunidade de acessar outros espaços. Logo depois que entrei na Plataforma, eles me indicaram para participar de feiras internacionais de arte. Primeiro foi a SP Arte, em agosto, num formato exclusivamente digital. E depois veio o ArtRio, que foi em outubro, com versões digital e presencial.

Então o seu posicionamento, afirmando a sua negritude, te ajudou?

Na minha primeira exposição foi assim. Eu tava na Lapa, numa sexta à noite. Então, uma conhecida minha, negra, estava lá também, conversando com um grupo. Ela conhecia meu trabalho das redes. Eu passei por ela, e ela me chamou. Eles estavam discutindo uma exposição para o espaço Pence, e ali, naquela hora, fui convidada a participar.

Outra conquista veio quando o Renan da Penha foi solto. Ele lançou um álbum, e teve a ideia de fazer uma galeria virtual com capas para cada uma das músicas. Oito artistas negros fizeram essas capas, e eu estava lá no meio. Quando a pessoa entrava no spotfy e procurava as músicas do Renan, cada música aparecia com a obra de um artista. Eu quase morri quando a Sony fez contato comigo. E eles me escolheram porque sou negra, e porque me posiciono a partir da minha identidade, que é preta.

Você promoveu um financiamento coletivo para comprar um forno para o seu ateliê. Essa rede deve ter sido importante, né?

Antes tinha um forno a gás, que eu mesma montei, olhando vídeo tutorial no Youtube. Durou bastante, mas chegou uma hora que explodiu. Aí eu queria fazer uma coisa mais segura, já que moro em um local com pouco espaço. Mas cerâmica é uma parada muito elitizada. Alguns equipamentos são muito caros. Então arrecadei recursos por meio de uma vaquinha online para comprar um forno elétrico. Fiz direto nas minhas redes sociais mesmo, durante quase todo o período de lockdown. E consegui! Agora tô juntando dinheiro para instalar o forno, e voltar com tudo aos trabalhos.

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