Pandemia, Desigualdades e Internet

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Pandemia, Desigualdades e Internet

A aceleração das transformações digitais agrava exclusões preexistentes. A desigualdade racial é o elo: “novo normal” para quem?

Pandemia, Desigualdades e Internet
As desigualdades entre brancos e negros se reproduz no contexto da inclusão digital
Por Ari Xavier e Bruna Hercog*

Vamos digitalizar geral! Esta máxima passou a fazer parte do cotidiano brasileiro desde que foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a pandemia do COVID-19, em 11 de março de 2020. Como num passe de mágica nasce o “novo normal”. Professores viram youtubers, trabalhadores adotam o home office, adolescentes assistem aulas online, aplicativos são facilmente usados e entregadores viram empreendedores de sucesso. Até poderia ser cômico se não fosse trágico constatar que muitos acreditam na digitalização como solução para enfrentarmos a pandemia e adentrarmos em um novo tempo, “onde se encerre de vez a era do papel”, como diz trecho da Estratégia de Governo Digital para o período 2020-2022.

A hashtag #SQN (Só Que Não) nunca foi tão pertinente. Novo normal para quem, cara pálida? Com certeza não há nada de novo para milhares de brasileiros, em sua maioria negros/as e indígenas que continuam privados de direitos básicos. Entre os cinco direitos que são mais sonegados, está em primeiro lugar o saneamento, com 37,6% excluídos dele, seguido da educação (28,2%), comunicação (25,2%), proteção social (15%) e moradia adequada (13%). É o que apontam os dados da Pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE 2017 e 2018. Portanto, sustentar uma ode à digitalização quando milhares não têm sequer casa, comida e direito à vida é, no mínimo, uma piada de mau gosto.

Desigualdade também no Acesso à Internet

Pandemia, Desigualdades e Internet: ao associar esses três temas é importante lembrar que cerca de 30% dos municípios brasileiros não contam com infraestrutura para garantir aos cidadãos um acesso de qualidade à rede. Mais da metade (53%) desses municípios está nas regiões Norte e Nordeste, onde residem as maiores populações negra e indígena do país. Mas mesmo em grandes centros urbanos, em se tratando de populações empobrecidas, o acesso à Internet é precarizado. Em geral o acesso se dá via celular, com limites de franquia de dados em função da impossibilidade financeira de contratar um “plano melhor”. Nessas condições, a baixa qualidade de sinal muitas vezes só permite o uso do WhatsApp para troca de mensagens.

Nas comunidades quilombolas e indígenas o cenário é ainda mais crítico. No mês de abril, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e o Intervozes fizeram um levantamento envolvendo 29 membros de comunidades quilombolas de 11 estados brasileiros para checar as condições de acesso à comunicação e informação (veja aqui). Vale ressaltar que a dificuldade de acesso à Internet é apontada por lideranças quilombolas, como um dos fatores que amplia a vulnerabilidade dessas comunidades à disseminação do coronavírus. (Veja a aqui).

O Marco Civil da Internet, em seu art. 4º, estabelecer que o serviço de conexão à internet deve estar acessível a todos. Além disso, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações ter emitido o Decreto 10.282/2020 que determina Telecomunicações e Internet como atividades essenciais que deverão permanecer em funcionamento durante a pandemia. Apesar desses diplomas legais, esta não é a realidade de milhares de pessoas, em sua maioria negras e indígenas. Portanto, não é possível adotar políticas sem considerar as desigualdades do país. Afinal, o Brasil onde todos têm smartphone e sinal de internet para acessar o Auxílio Emergencial do Governo Federal não existe.

Tudo o que nós tem é nós

“Tudo o que nós tem é nós”Trecho da canção “Principia” do rapper Emicida, o verso revela que para as populações subalternizadas fraturar o sistema não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência. Esta é a verdadeira máxima que sustenta estes outros centros que ainda insistimos em chamar periferias. E se a pandemia escancara as desigualdades, ela também revela as práticas quilombistas que fortalecem trocas solidárias e táticas de insubordinação. Se, em emergências como a atual, as respostas de organização comunitária são dadas de maneira imediata é porque elas são anteriores ao coronavírus.

Desde que o estado de emergência foi declarado ações comunitárias e de incidência política – online e offline – não pararam um segundo. Coletivos e organizações dos movimentos negro e indígena têm atuado em várias frentes para exigir ampliação do número de leitos disponíveis no SUS, impedir operações policiais nas favelas e para que suas próprias versões da história viralizem, na contramão das narrativas oficiais.

Experiências que Valem a Pena

Amplificar vozes e potências é o que querem os jovens de periferias e comunidades de povos tradicionais do Norte e Nordeste que criaram o podcast Existo! O grupo é um dos mais de 100 coletivos de várias partes do país que se articulam na coalizão #CoronaNasPeriferias para garantir informação de qualidade e contextualizada às realidades de suas quebradas. Mas tem mais! O Mapa Corona Nas Periferias foi criado para visibilizar as iniciativas de combate ao coronavírus, fomentando novas parcerias. A iniciativa é do coletivo Favela em Pauta e do Instituto Marielle Franco.

Também fica o convite para que se conheça os pleitos da Coalizão Negra por Direitos e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Não dá para deixar de mencionar também o Breque dos Apps, como ficou conhecida a paralisação organizada, pela primeira vez no dia 1º de julho pelos entregadores de aplicativos. Trabalhadores ocuparam ruas e redes para reivindicar melhores condições de trabalho e dizer o que deveria ser óbvio: “não somos números, somos vidas”. Vidas que têm cor: 71% dos entregadores em São Paulo são negros, como aponta pesquisa da Aliança Bike. Cenário que não deve diferir do restante do país.

Como vimos, a pandemia impulsionou nas quebradas brasileiras muitas ações e tecnologias sociais. Mas e eu com isso? O que podemos fazer para não sermos levados pelos embalos do “digitaliza geral”? Em primeiro lugar: escutar aqueles e aquelas que mais são afetados pelas exclusões e que estão produzindo respostas. Acessar as versões que estão sendo contadas por centenas de vozes negras, quilombolas, indígenas é fundamental para a construção de saídas coletivas e contextualizadas. Mais do que nunca é urgente que pensemos políticas de comunicação e educação que enfrentem as disparidades que estruturam nosso país, pois o processo de hiper digitalização que a pandemia agudiza não terá volta.

* Ari Xavier é pedagogo, mestrando em Cultura e Sociedade/UFBA e coordenador pedagógico da rede municipal de Salvador. Bruna Hercog é jornalista, doutoranda em Cultura e Sociedade/UFBA e integrante do Intervozes
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