A Cor da Palavra

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A Cor da Palavra

Falar sobre racismo é romper silêncios

Ontem eu vi Deus. E ele era quatro mulheres negras falando de suas dores e existências”. Para Thayná Alves, mulher negra, jornalista, militante e parte do Coletivo África em Nós, a escrita é desafio e potência: “Eu precisei reaprender que a minha fala é importante. Durante muito tempo a escrita materializou e ainda materializa minhas ideias no mundo. Por isso aprendi a ler e escrever tão cedo, já que também tão cedo a minha fala era descreditada. Então, percebi que a minha dor era de muitos tantos outros e outras como eu, que não só silenciados eram deslegitimados. ” Como a literatura pode ferir esse ocultamento imposto pelo patriarcalismo e pelo etnocentrismo? Como vencer essa sub-representação da mulher nas letras?

A literatura como forma de expressão da vida e da sociedade deve representar a pluralidade de sujeitos que atuam na construção de mundo. Se ver nas páginas, nos filmes, nos quadros é importante pois auxilia no processo de identificação com os nossos pares, com os que são iguais a nós, a todo tempo silenciados das formas mais violentas possíveis. Representatividade importa para evitar a manutenção de preconceitos arcaicos. Devemos estar atentos, pois ainda é preciso estar atento e forte para enfrentar um sistema estruturado de racismo em um país de maioria negra, como o Brasil.

Quando pensamos nos movimentos literários considerados expressão de uma identidade propriamente brasileira, podemos nos perguntar: aonde estão as mulheres escritoras? Em algum tempo teremos uma lista de mulheres que produziram literatura com grande maestria, mas ainda podemos acrescentar um tópico na discussão: Aonde estão as mulheres negras escritoras? Em que gaveta da memória essas mulheres foram trancadas? Pensar a mulher negra na literatura nos leva a dois caminhos: a representação através de textos de outros escritores e a representação da literatura produzida por essas mulheres.

O lugar da mulher negra na literatura

A representação feminina no cânone literário apaga o protagonismo das mulheres negras, protagonismo velado por personagens que fixavam os lugares sociais e raciais, com narrativas que exploravam temas ligados ao passado escravo, tratando a mulher negra como aquela possuidora do corpo objetificado, voltado para o prazer e a procriação, sempre a partir do olhar do escritor branco. São questionáveis as descrições de corpo e o gênero no romance oitocentista, como por exemplo: A quase branca e doce Escrava Isaura, em contraponto as cativas negras que servem ao senhor no romance de Bernardo Guimarães; as donzelas inocentes e de ascendência europeia em detrimento das mulheres negras ou indígenas, como em Iracema Ubirajara, de José de Alencar.

Bertoleza - Uma Pequena Tragédia Musical
Bertoleza representada na peça “Bertoleza – Uma Pequena Tragédia Musical” Foto: Gargarejo Cia Teatral

A formalidade de Aluísio de Azevedo nas descrições de Rita Baiana, descrita como a mulher sensual, chamada de “mulata” e Bertoleza, escrava, criada, submissa a seu companheiro em O Cortiço. Ou seja, os romances de destaque da literatura nacional ancoram a imagem da mulher à conformidade ou a resignação. E sabemos o porquê. O imaginário masculino enraizado na formação cultural brasileira deu a mulher negra um papel marginalizado em suas relações sociais, situação que ainda perdura em espaços de criação e representação artística e científica.

Acompanhamos o processo de candidatura de Conceição Evaristo à Academia Brasileira de Letras (lugar majoritariamente ocupado por homens brancos) e nos deparamos com a possibilidade da primeira mulher negra ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, fato que vai para além do reconhecimento do valor de sua obra literária e firma uma reparação histórica junto a um grupo massivamente excluído dos lugares de poder. Apenas em 1977, passados 80 anos da fundação da ABL, uma mulher pode ocupar uma cadeira, sendo Raquel de Queiróz a escolhida, depois da rejeição de duas candidaturas femininas: Amélia Beviláqua em 1930 e Dinah Silveira Queiroz em 1950.

Apesar das barreiras estruturais impostas as mulheres negras, a produção literária continua viva. Mulheres que enfrentaram todo tipo de opressão e violência encontraram na palavra escrita a ferramenta poderosa de denúncia das violações aos corpos, as identidades. Embora hoje a problemática seja revisitada pelo mercado editorial e pelo público consumidor de literatura, a visibilidade da produção literária das mulheres negras ainda é mínima, sem considerar as mulheres negras como produtoras de saber e conhecimento. Afinal de contas, escrever e publicar também é um ato político e de resistência. E como vencer e enfrentar o desinteresse do mundo literário na potência da escritura feminina, feminista e negra? Como nos disse Thayná: “Só as
nossas palavras carregam a nossa história! Sejam escritas ou faladas, que nós falemos por nós. Que nenhuma epistemologia racista nos diminua naquilo que a ancestralidade nos dotou: sermos autores de nossas próprias histórias! Toda escrita é potência daquele que a inscreve! Que escrevamos então nossas próprias histórias! ” Precisamos escrever. Escrever e divulgar o trabalho de mulheres que, na literatura, denunciam o lugar legado à mulher negra.

Fonte: BemTV

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