cotas em concursos públicos municipais.

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“O Racismo no Brasil é Sofisticado”

Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Niterói fala sobre a recente regulamentação das cotas em concursos públicos municipais.

O prefeito de Niterói, Rodrigo Neves, sancionou, no dia 30 de julho, a lei 3.434/2020, que regulamenta as cotas em concursos públicos municipais para negros, em Niterói. Em seu artigo primeiro, a lei prevê que serão destinados a pretos e pardos autodeclarados, 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos no Poder Executivo. O projeto que deu origem à lei (PL 172/2020) foi aprovado no dia 6 de julho pela Câmara de Vereadores do município, que estendeu seus efeitos aos concursos públicos também para o legislativo municipal. 

 Enviado à votação pelo prefeito, a o PL 172/2020 regulamenta, em parte, os artigos 16 e 18 do Estatuto Municipal de Igualdade Racial, de autoria da vereadora Verônica Lima (PT), sancionado ainda no ano de 2014. Foram necessários seis anos para que uma das ações afirmativas propostas pelo estatuto saísse do papel. Com papel de destaque no resgate desse debate na cidade, a Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil em Niterói (OAB-Niterói), não considera o trabalho concluído: “precisamos estar vigilantes. Ainda precisamos estender cotas para negras e negros às vagas de emprego terceirizado na prefeitura e na câmara de vereadores”, diz o presidente da comissão, Ricardo Rodrigues. Para ele, apesar da vitória (que merece ser comemorada), “a sociedade precisa estar atenta”.


QP: O que muda com a lei de cotas que foi aprovada pelo legislativo de Niterói?

Na verdade, com a regulamentação das cotas em concursos públicos municipais, a população negra ganha uma esperança de inserção em Niterói. Isso – e outras coisas – deveria ter sido feito lá em 1888, quando a escravidão foi abolida no Brasil. Não por acaso, a libertação dos escravizados coincide com o período de ascensão das teorias eugenistas. A elite brasileira acreditava que podia e devia “apurar a raça”, reduzindo a miscigenação. Ou seja, as pessoas que tinham sido escravizadas tinham que ficar bem longe. Então, após a abolição, você tem uma massa de ex-escravizados que fica desempregado e desassistido e quem vai trabalhar na lavoura, para fazer o que os negros faziam melhor que ninguém, são os imigrantes, principalmente italianos.

Nessa época, Niterói era a capital do antigo estado do Rio de Janeiro, onde os fazendeiros, e outras personalidades do Império possuíam casas e escravos. Seus filhos vinham para Niterói para estudar e passar temporadas. Por isso até hoje é uma cidade excludente, com o percentual de população negra baixo, em comparação com outras cidades do Brasil.

Acreditamos que as cotas, da forma como começamos a implementar, irão impulsionar os negros para os trabalhos formais trazendo uma expectativa de ampliação da igualdade racial e social. O Estatuto Municipal da Igualdade Racial é uma lei muito importante, mas estava “morta” desde 2014. Agora ela ressuscita com a regulamentação das cotas no serviço público. Mas há muito a ser feito. O tema das cotas ainda desperta polêmica.


QP: Como essa mudança vai se dar na prática?

Havendo concurso público para a prefeitura ou para a câmara dos vereadores, 20% das vagas deverão ser preenchidas por pessoas autodeclaradas negras. [Para o IBGE negros são todos os que se declaram pretos ou pardos]. A lei aprovada garante isso a partir da regulamentação do parágrafo único do artigo 16 do Estatuto Municipal da Igualdade Racial. Mas na visão da OAB, também cabem cotas para negros nas contratações de terceirizados pela prefeitura. Ou seja, 20% de todos os postos do trabalho terceirizado no executivo deveria ser reservado para negros. No nosso entendimento é o que preconiza o artigo 18 do Estatuto Municipal da Igualdade Racial. [Art. 18 – O Poder Público deverá promover políticas afirmativas que assegurem igualdade de oportunidades aos negros e negras no acesso aos cargos públicos, proporcionalmente a sua parcela na composição da população, e incentivará a uma maior equidade para os negros nos empregos oferecidos na iniciativa privada.]

QP: Qual foi o processo para chegarmos a essa lei que regulamenta as cotas? O Estatuto da Igualdade Racial é de 2014. Por que só agora essa lei, que regulamenta o estatuto, foi criada?

Quando assumimos a comissão de igualdade racial em janeiro de 2019, percebemos que um concurso da guarda municipal não fazia a reserva de vagas. Por isso começamos a procurar várias pessoas em Niterói, chamando a atenção para o tema. Conversamos com vários vereadores, inclusive com a autora do Estatuto da Igualdade Racial. Quando começamos esses contatos foi um grande susto . Ninguém tinha muita clareza do processo. A OAB procurou vários vereadores, organizações não governamentais, inclusive a Bem TV que, na época, tinha acabado de apresentar a pesquisa Qual Perfil.

A lei 3110/2014 [Estatuto Municipal da Igualdade Racial] tem uma pegadinha: pra ser posta em prática precisava de uma regulamentação que dependia da iniciativa do executivo. Ou seja, não bastava sancionar a lei: as cotas em concursos públicos municipais dependiam da ação do prefeito. Ficava nessa pendência.

Essa “falha” é fruto do racismo estrutural. O racismo no Brasil é sofisticado. Tem uma inteligência investida nisso, para que a segregação aconteça de forma silenciosa. Na África do Sul teve o Aparthaid, nos Estados Unidos teve as leis Jim Crow [leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no Sul dos Estados Unidos], e aqui no Brasil foi no talento. É o que acontece com o Estatuto da Igualdade Racial em Niterói. Ele aporta uma série de possibilidades, mas que só se concretizam se o executivo tiver a iniciativa. E o executivo ficou inerte por cinco anos, até a Comissão de Igualdade Racial da OAB Niterói mexer nisso.


QP: O que fez a Comissão de Igualdade Racial da OAB Niterói?

 Depois de dialogar com muitos atores em Niterói, enviamos ofício à prefeitura em fevereiro de 2019, chamando a atenção para o fato do concurso público para a guarda municipal não ter previsto cotas, e solicitando a regulamentação do artigo 16 do Estatuto da Igualdade Racial. Como não tivemos resposta procuramos o Ministério Público. A Dra. Renata Scarpa se sensibilizou e fez um ofício para a prefeitura, mas obteve uma resposta evasiva. Então ela ajuizou um mandado de injunção, postulando ao judiciário que interviesse para a regulamentação das cotas raciais, considerando a omissão do executivo, mesmo depois de tanto tempo da sanção do Estatuto da Igualdade Racial. A ação foi distribuída em 11 de setembro de 2019.

O processo começou a correr, mas continuamos na luta. Procuramos novamente a câmara dos vereadores e encontramos apoio no vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL), que abraçou a causa. Ele e articulou uma reunião entre o legislativo e as comissões da OAB de igualde racial e políticas públicas. Dessa articulação resultou o envio, pela câmara dos vereadores, de um ofício ao prefeito, reivindicando o ato do executivo que faltava para regulamentar a lei 3110/2014. Então foi tudo simultâneo: pressão do legislativo e pressão do judiciário, já que o mandado de injunção continuava seguindo.

Não obstante, teve também o contexto da pandemia; que escancarou o racismo e a desigualdade no Brasil. Teve a morte do adolescente João Pedro; numa desastrosa ação policial. Nos Estados Unidos teve também a morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco, motivando protestos antirracistas em todo mundo. Aqui em Niterói fizemos a marcha “Vidas Negras Importam”, que reuniu várias vertentes e organizações do movimento negro. Esse clamor dos movimentos sociais sensibilizou o prefeito Rodrigo Neves e tivemos, enfim, a lei sancionada. Essa pressão culmina com a regulamentação das cotas.

QP: Tem algum risco de, mesmo com a lei, acontecerem concursos públicos sem as cotas? Precisamos ficar vigilantes?

Sim, existe o risco. Como acontece nas universidades, as tentativas de fraudes ao sistema de cotas. Precisamos ficar vigilantes. A gente precisa articular os atores políticos partidários, a universidade e o movimento social. Desarticulados não temos capital político para enfrentar uma coisa tão complexa como o racismo estrutural. De acordo com a lei sancionada, para os concursos temos que implementar uma comissão de análise, que vai avaliar a aplicação do critério das cotas. Essa comissão deve ser composta por representantes da Coordenação de Igualdade Racial de Niterói, da câmara dos vereadores, da OAB Niterói e da sociedade civil, na figura de alguma organização não governamental que trabalhe com a questão da discriminação racial.

Como vai ser isso? Essa comissão será temporária [a cada concurso] ou permanente? Quem vai fiscalizar esse trabalho? Vamos ter que batalhar. Por exemplo, essa comissão deve estar vinculada diretamente ou ao gabinete do prefeito ou a uma secretaria, porque se ela estiver meramente vinculada a uma coordenação [de igualdade racial, por exemplo], ela perde capacidade de ação. O ideal é essa comissão fazer um estudo técnico para implementação de todo um novo sistema, a ser implementado e gerido politicamente. Se levarmos a sério, é um projeto grande.

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