Vidas Negras Importam: Emissoras de TV brasileiras cobriram os protestos nos EUA e Europa, mas seguem silenciando as vozes negras sobre racismo no país

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Vidas Negras Importam (Também Aqui)

Vidas Negras Importam: Emissoras de TV brasileiras cobriram os protestos nos EUA e Europa, mas silenciam as vozes negras sobre racismo no país.

Mabel Dias

“Eu não consigo respirar”. A frase dita por Eric Garner, em 2014, enquanto era estrangulado por um policial branco em Nova York, se tornou símbolo da violência policial contra a população negra. Ela também foi repetida diversas vezes por George Floyd, homem negro que trabalhava como segurança e morava na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, nos Estados Unidos, assassinado em 25 de maio de 2020. O mundo assistiu, estarrecido, ao homicídio cometido pelo policial branco Derek Chauvin que, por quase 9 minutos, pressionou com o seu joelho o pescoço de Floyd, enquanto outros três policiais assistiam à cena e a população em volta pedia a Chauvin que parasse.

A violência policial praticada contra George Floyd foi filmada e as imagens obtiveram ampla repercussão. No entanto, a cobertura da imprensa brasileira sobre a morte de mais um homem negro por forças do Estado começou apenas no dia 28, quando os Estados Unidos já registravam o terceiro dia de manifestações antirracistas que ocupavam as ruas em várias cidades no país.

Para imprensa, “quebra-quebra” é mais grave que racismo

Na Rede Globo, foram várias reportagens produzidas pelo Jornal Nacional e exibidas em horário nobre. A primeira durou apenas um minuto, mostrando as imagens da tortura policial contra Floyd e dando mais ênfase à destruição e queima de prédios em Minneapolis, do que às razões que motivaram tal violência. A reportagem trouxe ainda a fala do prefeito da cidade, Jacob Frey, sobre a ação dos manifestantes: “É a revolta contra 400 anos de desigualdades”.

No sábado, 30 de maio, o Jornal Nacional enfatizou na terceira reportagem sobre o caso, mais uma vez, a violência dos protestos, e os saques em lojas, e a declaração do presidente Donald Trump de convocar o Exército para reprimir os atos. A reportagem mostra a destruição dos prédios e os saques em bairros nobres das cidades norte-americanas , e “se esquece” de evidenciar que o “quebra-quebra” era reflexo de séculos de discriminação e violência contra a população negra.

Um prédio não pode ser mais importante do que uma vida tirada sem nenhum motivo. Na mesma reportagem, o JN mostrou as vigílias que aconteciam em memória de George Floyd em Nova York, e trouxe um panorama dos protestos que aconteciam em diversas cidades americanas. Uma delas contou com a participação de Gwen Carr, mãe de Garner, homem negro também assassinado por policiais há seis anos. Na sequência, o JN exibiu uma matéria especial sobre os inúmeros assassinatos de pessoas negras por policiais nos Estados Unidos, que traziam como motivação o racismo.

Nas semanas seguintes, o Jornal Nacional continuou fazendo a cobertura dos protestos antirracistas nos Estados Unidos, e o enfoque das matérias começou a mudar. Os textos dos repórteres e apresentadores passam a abordar o racismo e a violência policial, e as reportagens passaram a ter maior tempo de duração. A Globo colocou repórteres nas várias cidades onde as manifestações estavam acontecendo. Em quase todas as edições do JN que cobria os atos antirracistas, os repórteres entravam ao vivo e narravam os fatos no momento em que aconteciam.

O Movimento Chega ao Brasil…

No dia 02 de junho o movimento antirracista chegou à França e ao Brasil. Curitiba foi uma das primeiras cidades brasileiras onde o movimento negro realizou um ato em praça pública, resgatando o bordão “Vidas Negras Importam”. Em sua reportagem, o Jornal Nacional entrevistou um policial militar, que reprimiu os manifestantes, e destacou a posição da OAB local sobre a quebra dos vidros de um prédio público. Nenhum representante do movimento negro foi ouvido . No dia seguinte, um marco histórico: após severas críticas por falar de racismo apenas com jornalistas brancos, o programa “Em Pauta”, da Globo News, debateu o tema com a presença exclusiva de jornalistas negras e negros. (Veja mais sobre isso clicando aqui)

Ao mesmo tempo em que cobria as manifestações e trazia participações de seus repórteres ao vivo no JN, falando sobre a onda antirracista mundial, a Globo também fez a cobertura do velório de George Floyd, que aconteceu na igreja Fountain of Praise, na cidade de Houston, no Texas, e contou com a participação de Martin Luther King III, filho de um dos principais líderes negros norte-americanos, e do candidato à presidência pelo Democratas, Joe Biden.

As manifestações que denunciavam o racismo estrutural na sociedade americana também tiveram atenção do Jornal da Record, telejornal da Record TV,  que vai ao ar às 21h30. O JR parece uma cópia do Jornal Nacional, e também começou a noticiar o assassinato de George Floyd e dos atos antirracistas somente no dia 28 de maio. A primeira reportagem durou pouco mais de um minuto e importou-se mais em abordar a queima dos prédios do que o que motivo das manifestações. Diferente da Globo, não colocou repórteres para cobrir as manifestações in loco.

A jornalista Heloisa Vilella, que é correspondente da emissora nos Estados Unidos, reportava os acontecimentos de casa, enquanto imagens dos protestos eram mostrados pelo telejornal. Em uma das reportagens, ela ressaltou as ações que aconteciam também nas redes sociais, através do movimento “Blackout Tuesday”, que também havia chegado ao Brasil. Ainda na edição do dia 02 de junho, o JR apresentou uma reportagem sobre a violência policial contra um homem negro no Brasil, na cidade de Planaltina, no Distrito Federal. Nas imagens exibidas pelo telejornal, ele é espancado por policiais e a equipe conseguiu entrevistá-lo quando já se encontrava em casa. “Eu fui agredido porque sou negro. Isso acontece sempre”, denunciou.

No SBT Brasil, telejornal veiculado pelo SBT todas as noites a partir das 19h, o tom das matérias enfoca a morte de pessoas durante os protestos, carros incendiados e lojas quebradas. A própria manchete de uma das reportagens colocada na tela da TV diz: “Protestos pela morte de homem negro deixam dois mortos”. Parece que a morte de George Floyd foi a responsável pela morte dessas duas pessoas, segundo o telejornal. Mas nem tudo está perdido. A repórter entrevista alguns dos manifestantes negros, que falam sobre a discriminação racial no país onde moram. Para uma jovem indiana a polícia norte-americana lhe dá mais medo do que o coronavírus.

Essa frase reflete bem a realidade dos negros e imigrantes nos Estados Unidos. O vídeo com o protesto da ativista negra Tamika Mallory correu o mundo e expôs de maneira objetiva os porquês das pessoas ocuparem as ruas e destruírem prédios. A reportagem do SBT exibiu trechos da fala de Tamika: “A razão pela qual os edifícios estão queimando não é apenas pelo nosso irmão George Floyd. Eles estão queimando porque as pessoas aqui em Minnesota estão dizendo para outras pessoas em Nova York, Califórnia, para pessoas de todo o país: basta! Estamos pedindo a justiça que nosso povo merece”.

Casos no Brasil evidenciam racismo estrutural da imprensa

Enquanto aconteciam os protestos nos Estados Unidos, no dia 2 de junho, o menino negro Miguel Otávio da Silva, de apenas cinco anos, caia do nono andar de um prédio de luxo onde a mãe dele trabalhava como doméstica, em Recife, Pernambuco. Mirtes da Silva havia saído para passear com o cachorro de sua patroa, Sarí Corte Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré, e deixou o filho sob os cuidados dela. Tanto a Globo quanto a Record fizeram a cobertura dos protestos que denunciavam as relações de extrema desigualdade entre a patroa e a mãe de Miguel, revelando os traços do colonialismo e do racismo que estão na gênese da sociedade brasileira.

Além disso, conforme mostrou a reportagem da “Marco Zero Conteúdo“, não foi só a polícia que tentou manter em segredo a identidade de Corte Real. “Os veículos de comunicação que fazem a cobertura cotidiana da cidade também contribuíram ao contentar-se com as informações oficiais repassadas pelos delegados. O nome de Sarí tornou-se público graças às tias e primas de Miguel, que usaram seus perfis nas redes sociais para identificá-la”, diz a reportagem. O Fantástico, programa dominical da Globo, continua acompanhando o caso.

O assassinato do adolescente Guilherme Guedes, de apenas 15 anos, por um policial militar que trabalhava como segurança também foi reportado pelo Jornal Nacional, no dia 15 de junho. Assim como em relação às manifestações nos Estados Unidos, a reportagem enfatizou a queima de ônibus pelos moradores do bairro onde Guilherme morava, mas a matéria também mostrou imagens de outras violências provocadas por policiais no estado de São Paulo. Em nenhuma das reportagens exibidas pelo JN houve a problematização acerca da violência policial e do racismo, marca principal deste tipo de procedimento por parte dos policiais.

Faltou ao jornalismo brasileiro evidenciar o racismo estrutural no Brasil e tão presente nas corporações policiais, racismo que vem ceifando, a cada 23 minutos, a vida de jovens negros. Como bem pontuou a professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Ana Cláudia Mielke, enquanto a cobertura da mídia brasileira evidenciava em relação ao caso de George Floyd que se tratava da morte de um homem preto por um policial branco e ecoava a palavra racismo, por que este mesmo enfoque não é dado aos casos de execuções de jovens negros pela Polícia Militar no Brasil?

Mabel Dias é jornalista, associada ao Coletivo Intervozes e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

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