O que é lugar de fala? O conceito busca promover a diversidade de vozes e não a interdição do diálogo.
Em 02 de junho de 2020, o programa “Em Pauta” da Globonews dedicou uma boa parte da sua edição às manifestações antirracismo que aconteceram nos Estados Unidos após a morte de George Floyd. Na tela do espectador, apenas jornalistas brancos. Mas as críticas vieram pela Internet, e a o canal de jornalismo buscou se redimir. No dia seguinte, discutindo a mesma pauta, o programa colocou em cena cinco comentaristas negros. Conduzindo o debate, Heraldo Pereira substituiu o apresentador branco Marcelo Cosme. Esse caso remete ao “lugar de fala”, uma ideia quem tem bombado nos debates sobre os direitos das minorias.
A disseminação do conceito acontece no âmbito do debate feminista estadunidense, por volta dos anos 1980. No entanto, segundo o professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado, as origens estão em dois trabalhos produzidos fora desse país. De acordo com ele, o que se tornaria o “lugar de fala” aparece pela primeira vez no artigo O problema de falar pelos outros, da filósofa panamenha Linda Alcoff, e no ensaio Pode o subalterno pode falar?, da professora indiana Gayatri Spivak.
Mas afinal, o que é Lugar de Fala?
O conceito enfrenta a ideia de uma verdade única. Durante muito tempo se acreditou que a ciência, as escolas, as igrejas, eram entidades “neutras”. Por isso, as pessoas entendiam que só havia um jeito de explicar o mundo. Só que a ciência, a igreja, as escolas, e outras instituições não são neutras. Elas refletem todos os preconceitos e desigualdades da sociedade.
Então, se um cientista, branco, com pós-doutorado explica como funciona o sistema prisional, não importa o quanto ele estudou, essa será sempre apenas uma das muitas maneiras de falar desse tema. O depoimento de um detento negro sobre o assunto terá o mesmo valor. Mas isso é só na teoria, porque, de fato, alguns grupos sociais são historicamente silenciados. A ideia de “lugar de fala” busca resgatar o direito dessas populações a serem ouvidas. É o que explica o professor de direito da Unifesp e militante dos direitos humanos Renan Quinalha:
– O que antes era uma posição social desconsiderada, se transforma em um ponto de vista privilegiado para a reflexão em torno daquela condição. O conhecimento baseado na experiência diretamente vivida daquela opressão, ganha destaque e se torna fundamental para discutir a transformação da realidade. Uma teoria crítica não é mais aquela feita “sobre” os oprimidos, mas é aquela “feita pelos” oprimidos – diz ele.
A partir dessa nova abordagem, filmes de diretores negros recebem destaque. Livros escritos por mulheres e indígenas são valorizados pela mídia. Até nas empresas, a diversidade entre os colaboradores se torna um valor. Mas, sem dúvida, ainda há um longo caminho a percorrer.
Os Riscos do Uso Descontextualizado
Todos temos um lugar de fala que se relaciona com a forma como estamos inseridos na sociedade. O gênero, a classe social, a raça, o lugar de moradia, a origem familiar… Tudo influencia na forma como interpretamos e comunicamos a realidade. O importante é valorizar todas as visões, ampliando a diversidade de opiniões consideradas no debate público. Brancos podem falar de racismo, homens podem falar de machismo, e heterossexuais podem falar sobre homossexualidade, desde que reconheçam a sua perspectiva. Desde que deixem claro o seu “lugar de fala”.
Para professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP, Rosane Borges, muita gente confunde o conceito de “lugar de fala” com o de representação: “uma mulher branca não pode representar uma mulher negra, mas isso não impede que ela formule uma opinião sobre racismo”, diz ela. A educadora e articulista da Carta Capital, Luana Tolentino, concorda:
– Noto que o lugar de fala, quando descontextualizado, vira uma desculpa para a interdição do diálogo. Dizer que todos temos um lugar de fala e que precisamos reconhecê-lo, não é a mesma coisa que dizer que só determinado segmento pode falar sobre si. Eu, mulher negra, falo do racismo a partir da minha experiência de vida, que diz sobre aspectos do grupo social a que pertenço. Mas nada impede que um sujeito branco também fale sobre racismo e que abrace a causa. O importante é que ele entenda que nós, mulheres negras, enquanto grupo, também precisamos ser ouvidas e reconhecidas.
Para finalizar, voltamos ao caso do programa da Globonews, narradon o início desse texto. É possível um debate de qualidade sobre racismo sem ouvir negros? No mínimo a abordagem ficará incompleta.